Entrevista - Dr. Hong Jin Pai

História de um Pioneiro:

Dr Hong Jin Pai

Conheci o Dr Hong  quando fui sua aluna no CEIMEC em 1995, me impressionei pelo conhecimento que para mim era novo e a facilidade como ele transmitia tudo aquilo.

Pedi ao Dr Hong um relato de sua história como acupunturista, e ele me mandou uma história incrível, que não consegui parar de ler,contou da acupuntura médica no Brasil e seus primórdios, dele como recém-formado atravessando o mundo para estudar em uma China onde estrangeiros não eram bem vindos, correndo risco de vida pois poderia ser considerado inimigo do Estado e desaparecer naquela terra distante, nos conta também como foi o regresso e às dificuldades de transformar a acupuntura em uma especialidade respeitável como é hoje.

Essa é uma oportunidade única para todos os acupunturistas brasileiros conhecerem e reconhecerem o trabalho desse homem que ajudou a introduzir  a acupuntura médica no Brasil.

(Patricia Evelyne – coordenadora do Boletim do CMBA)


 

 

Meu interesse pela acupuntura

Nem sempre eu quis ser médico. Quando eu era adolescente, a partir de 1970 por ter ajudado meu pai nas reformas da nossa casa e gostar de desenhar plantas e projetos de alvenaria, pensei seriamente em cursar engenharia civil. Porém, meu pai, um homem muito sábio que é o meu grande guia espiritual. E com muita experiência de vida, ele me aconselhou, no seu passado ele   foi  um chefe do serviço de contra- espionagem  do exército do general Chan Ka- Check na Segunda Guerra Mundial

_ A única profissão que consegue sobreviver em qualquer lugar e a qualquer momento , é a medicina. Faça medicina, filho.

Eu disse que não queria, e ele me repreendeu com um provérbio chinês o qual diz:

Tente amar aquilo que está fazendo e você certamente vai gostar. Teimei com ele. E meu pai foi ainda mais persuasivo, ele deu-me duas opções; ou eu cursava medicina ou eu estava fora de casa. Bom, nesse caso, resolvi dar uma chance para o ofício, e como muito bem constatado pelo provérbio, acabei me apaixonando pela profissão.

Quando entrei na Universidade de São Paulo (USP) aos 17 anos com  segundo ano colegial, a matricula foi aceita pelo certificado do supletivo nível colegial.

A realidade da acupuntura no Brasil e no mundo começou a mudar apenas após a visita do presidente norte-americano, Richard Nixon, à China em 1972. O governo chinês fez questão de revelar ao mundo a sua cultura milenar e seus conhecimentos científicos ao presidente dos Estados Unidos como forma de propagandear o conhecimento dos chineses socialistas. Havia o interesse do governo chinês de modificar a fama de exótico, feudal e isolado que o país recebia até então

No entanto, a acupuntura ainda estava muito longe da realidade brasileira A biblioteca da Faculdade de Medicina da USP recebeu as primeiras revistas sobre Medicina Tradicional Chinesa em 1976, quando eu cursava o terceiro ano de medicina, até aquele momento, não tínhamos nenhum documento ou publicação a respeito das práticas médicas do Oriente.

Um dos assuntos que mais chamaram a atenção do mundo foi justamente a prática da acupuntura na Medicina Tradicional Chinesa. A aplicação de agulhas prometia o alívio da dor e a substituição de drogas analgésicas, resultados que eram considerados extraordinários por uns e inacreditáveis por outros. Ao mesmo tempo, notícias mirabolantes invadiram a mídia mundial e começou-se a proliferar dúvidas sobre o verdadeiro efeito da acupuntura.

Não se sabia naquela época os efeitos da endorfina no corpo, então havia a constatação clínica de que em alguns casos a acupuntura funcionava muito bem, mas os médicos cientistas não conseguiam comprovar de que maneira funcionava o mecanismo de estímulo no corpo do paciente. Com mais descobertas sobre o funcionamento do sistema nervoso, as primeiras constatações foram publicadas e esses trabalhos reforçam a ação medicinal da acupuntura. Ou seja, não era somente “coisa de oriental” ou um efeito placebo, como alguns ainda costumam afirmar.

Na época em que se falou na USP pela primeira vez sobre acupuntura sendo aplicada no sistema nervoso periférico, eu estava no terceiro ano de medicina. Eu me lembro dos meus colegas e professores terem me bombardeado de perguntas sobre acupuntura e eu saber tão pouco quanto eles. Por causa de minhas origens chinesas, os colegas acreditavam que eu sabia alguma coisa, mas estavam enganados,

E teve uma vez um professor Zerbini de cardiologia deu uma palestra sobre a anestesia pela acupuntura na sua visita em Beijing.  Naquele momento em diante, comecei a me sentir na obrigação de estudar o tema, um pouco em razão de minhas origens, como também porque as poucas publicações que contávamos na Universidade eram todas escritas em Chinês e poucos alunos poderiam decifrar os artigos. E foi assim que se deu o início do meu interesse pela prática da Acupuntura.

Os charlatões do ofício

Ainda nos tempos de estudante de medicina, juntei-me com uns colegas e fomos procurar por um homem de descendência metade chinesa, metade portuguesa vindo de Macau. Diziam que ele curava qualquer tipo de enfermidade através de suas agulhas.

A teoria ensinada por esse acupunturista era muito estranha comparada aos ensinamentos da Faculdade de Medicina. Ele alegava que qualquer enfermidade poderia ser resolvida por meio da regularização do Qi, ou seja, uma espécie de “energia” que afeta os órgãos internos. Por outro lado, ele me tratou uma sinusite crônica incurável. Ou seja, fiquei num dilema. Eu não acreditava no que ele dizia, mas de alguma forma, aquele homem soube tratar da minha enfermidade.

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Tive a outra oportunidade, fui  ao consultório de uma médica para conhecer a acupuntura médica .  O paciente era um menino de dez anos de idade com sequelas de paralisia cerebral. Na hora da sessão, eu vi a médica abrir um estojo de caneta de luxo empoeirado e retirar as agulhas de lá de dentro! Não havia nenhum cuidado com higiene! Não aguentei assistir aquilo, eu inventei na hora uma desculpa para sair mais cedo e fui-me embora.

Continuei meus estudos em medicina ainda curioso, mas sem esperanças de ser convencido pelas técnicas chinesas. Passado algum tempo, formei-me na faculdade de Medicina. Era o ano de 1979.

Eu ainda pensava em qual especialidade eu poderia seguir. Nos primeiros meses de formado pensei em me especializar em patologia clínica. O sonho de meu pai era ter um filho dono de hospital. Porém, … nossa falta de recurso financeiro colocou as rédeas nesse desejo. De qualquer forma, entrei na residência de patologia clínica porque, afinal de contas, para montar um laboratório, eu precisaria conhecer profundamente o funcionamento dos laboratórios de análise.

Fiz um curso de administração hospitalar e tomei a dimensão da complexidade que é gerenciar um hospital, tanto na área de infraestrutura como em recursos humanos. Naquele tempo ainda por cima, eu ouvi falar que existiam muitas irregularidades administrativas nos laboratórios. e nos hospitais.

Eu estava muito desanimado com aquele início de carreira e fui me aconselhar com meu pai. Ele então foi iluminador. Disse-me para desistir dessa ideia se eu já via que não servia para mim e lembrou-me da acupuntura outra vez. E daí, então, ele me sugeriu:

_Por que você não vai estudar acupuntura na China com quem sabe de verdade do assunto? Se gostar fica, se não gostar, passeia e depois volta.

Não era má ideia, visitar a China outra vez era um sonho de menino que eu havia inclusive me esquecido. A partir daí, comecei a tomar as providências para a viagem.

Um dia, ao encontrar com um antigo professor da residência médica, eu contei a ele sobre os meus planos de me especializar em acupuntura na China socialista, e ele me aconselhou, não sei se brincando ou falando sério:

_Boa viagem, mas antes por favor, dê uma passadinha na ala psiquiátrica, você não pode estar bem do juízo.

Se mesmo hoje existe um julgamento preconceituoso com a acupuntura, imaginem naquele tempo.

No ano de 1982, na época da minha primeira viagem de retorno ao Oriente, a China saía ainda do trauma da Revolução Cultural Comunista ocorrida em 1949 e perdurado até 1962, e gradualmente abria suas portas para o exterior após um longo período de isolamento.

De passagem por Vancouver

Assim que deixei o Brasil rumo à China, eu aproveitei o caminho para visitar uma prima de minha mãe em Vancouver.

Fiz uma escala na cidade de  São Francisco, aproveitei os preços de uma promoção de roupas e comprei algumas peças para utilizar na viagem, lembro-me muito bem daquela ocasião, eram três camisas boas de malha grossa de cor vibrante estilo cowboy. Mal sabia eu que aquelas roupas seriam pior que placa de sinalização na China, e eu as comprei justamente para a viagem, porque o preço estava bom e eram quentinhas.

Logo na primeira noite de conversa com as minhas primas na casa delas em  Vancouver, depois de eu contar todas as novidades dos familiares e os planos para a viagem, minha prima me perguntou se eu estava certo sobre a decisão de ir para a China. Ela não fez por mal, e eu vi em seu semblante que parecia apreensiva com a pergunta. Eu pude pressentir naquele mesmo instante que as duas sutilmente tentariam me desencorajar a prosseguir viagem.

A China era vista como uma país extremamente autoritário e perigoso pela comunidade chinesa no exterior devido à Revolução Cultura Chinesa feita por Mao Tsé-Tung na década de 60.

É importante uma pequena pausa em meus relatos para contar um pouco o que foi essa revolução e como ela me alcançou, quinze anos depois. As sequelas daquele período sombrio perduraram sobre todos os chineses, inclusive em nós, em mim e nas minhas primas, que estávamos tão longe do nosso país de origem.

Mao também incentivou e encorajou a criação de comitês revolucionários (bases da Guarda Vermelha), que eram compostas pelas mais diversas forças militares e camponesas. Ele acreditava que uma segunda fase da Revolução Chinesa seria justamente ultrapassar a revolução da ordem econômica para a ordem ideológica, a fim de alcançar a alma do cidadão chinês. Nesse sentido se justifica a palavra “cultural” no nome da revolução. Com as modificações da nova política, todos os chineses da China se tornaram vigilantes do sistema comunista, ou seja, aonde quer que eu fosse, por eu ser um chinês estrangeiro e nascido em Taiwan, haveriam olhos me espionando.

Minhas primas sentiam esse medo e sabiam da vigilância perigosa sobre os chineses ocidentais na China, elas temiam pela minha segurança. Inclusive, as duas fizeram questão de me apresentar ao vizinho de porta delas, um senhor acupunturista muito bem-sucedido. Minha prima mais velha, a amiga de minha mãe, pediu a ele se eu não poderia acompanhá-lo no exercício da profissão como estagiário, assim, eu aprenderia acupuntura com aquele homem no Canadá ao invés da China.

Eu me lembro de ficar impressionado com a quantidade de carros luxuosos que aquele senhor acupunturista exibia em frente à sua casa, ele devia de ser muito bom, porque era inegável que tinha enriquecido com o ofício. E eu cogitei a ideia de permanecer no Canadá, afinal, lá eu tinha familiares e um mestre muito bem-sucedido fazendo exatamente aquilo que eu gostaria de fazer, mas eu tinha dúvidas ainda, então recorri ao meu pai.

Pelo telefone, meu pai lembrou-me de um provérbio chinês: se deseja capturar um filhote de tigre, deve ir até a toca da tigresa. O provérbio ensina que não se deve aprender nada pelo caminho curto, não é correto e nem adequado aprender dessa maneira. O vizinho acupunturista vinha de Taiwan assim como minha família, e meu pai alertou-me de que a arte da acupuntura era rara em Taiwan, vir daquela região não dava garantias de que ele fosse sábio no ofício. Definitivamente, ali não era a toca da tigresa.

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Curiosidade  particular, até enfim interceptei uma conversa telefônica da minha tia com minha mãe onde as duas arranjavam o meu casamento com a filha da prima.

Minha prima era muito rica porque seu marido era dono de um cartel de empresas em Taiwan, e a filha era herdeira de um império. Se eu tivesse me casado naquela ocasião provavelmente agora eu seria um milionário. Mas eu estava decidido a ir para a China.

A viagem à China

Fui para a China, mas a primeira parada foi Hong Kong. Ao lado de Hong Kong, localiza-se a província de Guangdong onde fica o município de Guangzhou.

Enquanto eu passava pela revista dos soldados na fronteira, uma senhora, oficial do governo, encontrou um estojo com agulhas, botões, linhas de costura e quinquilharias de pequenos consertos em minha mala de mão. A oficial considerou aqueles objetos um pouco estranhos e pediu que eu me explicasse sobre eles. Eu disse então que no Brasil haviam me orientado de que eu devesse levar todo o material que eu necessitasse pois não encontraria nada por lá. Ela riu de mim, disse que havia de um tudo na China, menos rapazes bons de pregar botões, e eu então, para quebrar aquele constrangimento, contei que minha mãe me ensinou assim; o primeiro botão solto, ela prega, o segundo, ela me mostra como pregar, e o terceiro devo eu pregá-lo sozinho. A senhora sorriu simpática e me deixou passar.

Eu tive uma sensação muito esquisita e confusa com aqueles oficiais. Sempre fui instruído em Taiwan sobre a crueldade dos comunistas e, ao me deparar com aquela senhora e os outros, todos eles sérios e por vezes amáveis, caiu-me a ficha! Eu percebi que tudo que achei que sabia sobre a China estava prestes a sofrer mudanças.

Uma parada no passado

Ao embarcar em Guangzhou, eu me deparei com uma estação de trem cheia de gente vestida de maneira semelhante carregando trouxas de pano em varetas de bambu. A cena lembrou-me imediatamente da minha infância em Taiwan quinze anos atrás. Aquele lugar parecia ter sido congelado no tempo.

Fui na primeira faculdade de medicina, na recepção da Faculdade de MTC, um funcionário responsável pelos alunos me atendeu. Ele me explicou que naquela faculdade não havia cursos para estrangeiros ou chineses de fora e disse que poderia me ajudar apenas escrevendo uma carta de recomendação para outro lugar, nada além disso, estrangeiros eram proibidos de estudar com eles. O homem direcionou a carta de recomendação para a Faculdade de Medicina Tradicional Chinesa de Pequim com o seu nome e assinatura embaixo, agradeci e guardei o papel com muito cuidado na minha maleta. Mais tarde, por sorte do destino, essa mesma carta se tornou a minha primeira prova contra a burocracia monumental da China. Através dela eu consegui chamar a atenção do ministro responsável pelo Ministério de Assuntos dos Chineses Estrangeiros e provar a discriminação que eu estava sofrendo por ser de fora, um chinês banana, como eles diziam

A segunda tentativa , os amigos em Wu Han e meu primeiro desafio  arriscado

De volta para as minhas obrigações, desembarquei de um trem em Wu Han para visitar uma professora, colega de uma conhecida de meu pai, que poderia me ajudar com alguma orientação para estágio. Da estação, eu peguei um taxi até a porta de sua casa com minhas malas e uma valise embaixo do braço, lá eu trazia a carta da pessoa conhecida e o documento que o funcionário havia me dado em Guangzhou.

Não deixei de notar que a minha figura causava uma sensação estranha nas pessoas. Os passantes me olhavam desconfiados, evidentemente eu não era dali. Naquela altura, eu ainda vestia as camisas de cowboy compradas em São Francisco e todo mundo evitava qualquer tipo de contato comigo. Apenas uma criança, dos seus 12 anos de idade, teve a bondade de me dar alguma informação sobre o caminho, os outros se recusaram a me ouvir.

Já era fim de tarde quando toquei a campainha da porta da professora, ela estava em casa, dei sorte. A professora abriu a porta, olhou para mim e para as minhas malas e começou a chorar. E eu fiquei chocado! O que eu tinha feito de errado? Foi tudo muito esquisito e constrangedor. Ela me pediu para ir embora e retornar no dia seguinte por volta do mesmo horário. Foi a situação mais esquisita da minha vida. De qualquer forma, no outro dia, até porque eu estava curioso, retornei para a frente da casa dela.

As cicatrizes da Revolução Cultural

A senhora abriu a porta para mim no dia seguinte muito mais recomposta, desculpou-se de seu comportamento estranho e explicou-me com calma toda a situação. Se por acaso houvesse qualquer tipo de retrocesso político naquele momento, os chineses não tinham como prever as reviravoltas políticas. Minha presença na porta da sua casa poderia causar problemas sérios para ela e sua família. Naturalmente, eu pedi mil desculpas. Nunca imaginei que a minha mera figura era motivo para a condenação de alguém por traição ou espionagem.

Ela poderia ser acusada de espionagem para Chang Kai Shek mesmo depois de tantos anos de “abertura política”.

Taiwan foi devolvida ao domínio chinês após a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, antes estava sob controle dos japoneses e foi um lugar de exílio para muitos nacionalistas seguidores de Chang Kai Shek. Ou seja, por eu e minha família sermos de Taiwan, abrigar-me em sua casa poderia significar dar teto a um dissidente de Mao Tsé-Tung. A punição para isso é pena de morte ou trabalho severo.

Eles se despediram de mim de forma muito amável e me disseram que iam escrever para os colegas nas universidades,

Eles se despediram de mim de forma muito amável e me disseram que iam escrever para os colegas nas outras universidades da China . Apenas uma faculdade tinha o curso de acupuntura da forma como eu gostaria de estudar e era justamente aquela universidade que eu visitei em Guangzhou, o diretor da instituição respondeu uma carta aos meus novos amigos informando sobre a abertura de um curso de acupuntura e ainda por cima comentou:

_Eu acabei de despachar um chinês do Brasil  para Pequim,

Contei com a ajuda inclusive do noivo da filha dos meus novos amigos, ele me arrumou um estágio no Hospital de MTC de Wu Han.

O hospital era muito bom, uma referência na província, e eu me animei. Marcamos horário com o responsável pelos estágios do estabelecimento e consegui finalmente fechar um contrato pelo período de doze meses no valor de quatrocentos dólares mensais. O hospital aceitava dólares porque assim deixava um estoque da moeda para a compra de materiais estrangeiros. Na segunda-feira eu começaria o estágio.

Na segunda-feira fui ansioso começar meus estudos no hospital. Chegando lá, os funcionários me direcionaram para a sala do diretor do hospital ao invés da sala de aula e comecei a sentir algo de estranho no ar. O diretor parecia muito sem jeito.

Ele me explicou que, na sexta-feira daquela semana, recebeu a visita do secretário de saúde do município e, após a inspeção cotidiana do hospital, o homem foi avisado pelos funcionários sobre a minha chegada. Depois de se informar também sobre a mensalidade que eu havia acertado com o diretor do hospital, o oficial achou um absurdo o valor que eu ia pagar. Para ele, eu deveria gastar era uma fortuna para estudar na China. Afinal de contas, eu vinha do outro lado do mundo só para aprender com eles. Porque em cidade de Nova York, numa sessão de acupuntura, cada agulha inserida, o médico cobrava 5 dolares, então 4 mil dólares por mês não era caro.

Na China, não se pode contestar a autoridade em hipótese alguma e a essa altura eu começava a entender de que forma aconteciam as coisas por lá. Acontece que eu fiquei com pena do diretor do hospital. Ele abaixou a cabeça ao me comunicar do novo preço, eu jamais poderia imaginar àquela altura da vida um diretor de um grande hospital tão abatido que não quisesse ao menos olhar nos olhos de alguém.

Como que ele podia fazer isso comigo se já tínhamos inclusive assinado um contrato? Tinta no papel não funciona na China? Questionei ele. De 400 dólares  pulou para 4000  dólares por mês,  era uma quantia exorbitante para a época. Eu nunca conseguiria pagar aquela soma em dinheiro.

O diretor me pediu desculpas sinceras e disse que não podia fazer nada contra aquela autoridade, ele me aconselhou que minha única chance, por assim dizer, seria se eu conseguisse alguma ajuda no escritório para chineses estrangeiros residentes na China. Como no país existem muitos cidadãos que migram para fora e voltam para a terra natal, em qualquer município maior existe um órgão chamado de Jiao Ban. Esse escritório cuida exclusivamente dos interesses de chineses de fora, desde problemas com documentos até intermédios comerciais.

A ajuda do Jiao Ban

Fui no dia seguinte no endereço indicado pelo diretor levando meus documentos e a carta que o sujeito de Guangzhou tinha enviado para a minha colega. A secretaria funcionava em uma sala grande com aproximadamente oito mesas. Em cada mesa ficava um funcionário encarregado de uma pessoa. Era uma típica repartição pública. Os chineses tinham o costume de fumar e tomar chá o dia inteiro e, na sala, predominava um odor de chá com fumaça de cigarro.

Eu me senti um tanto incomodado por ter que esperar dentro daquele lugar para ser atendido, mas acabou não demorando para um senhor oficial me chamar. O camarada era o encarregado de ouvir minha queixa.

Ele mantinha o jornal aberto em frente ao seu rosto como seu eu pudesse falar qualquer assunto enquanto ele lia tranquilamente seu jornal, tinha também as botas em cima da mesa, uma postura grosseira para o lugar e sua função. Eu estranhei demais aqueles modos, mas como fui lá para defender a minha causa e era com ele que eu deveria me dirigir, foi exatamente isso que fiz.

Comecei explicando os meus motivos para estar na China, contei sobre a procura pelas faculdades de MTC de acupuntura até encontrar estágio no hospital, comentei sobre os meus amigos professores e disse a ele que já havia inclusive assinado um contrato de estágio com um valor fixo e alteraram o valor sem nenhum tipo de argumento coerente e legal.

Ele respondeu simplesmente que o Partido Comunista tinha sempre razão e podia mudar o contrato conforme o interesse do momento. Falou isso sem nem descolar o olho do jornal e isso me deixou possesso. Insisti. Argumentei que um secretário de saúde não pode falar pelo Estado, que não tinha o direito de alterar um acordo de trabalho. O oficial deu de ombros, e então me enfureci de vez:

_Quem é você para falar em nome do partido comunista? Se o partido muda a regra conforme o seu interesse então é um partido autoritário e mentiroso! 

Nesse momento, o homem abaixou o jornal e me encarou muito sério. Ele não parecia bravo, estava mesmo era intrigado com a minha reação. Todas as outras pessoas da sala também olharam perplexas para mim. Pensei comigo:

_Droga! Falei demais.

O oficial levantou-se da cadeira sem dizer um pio e sumiu para uma sala aos fundos. O recinto ficou em silêncio total. Ninguém se mexia. Naquela época, aquele tipo de atitude minha poderia ser motivo para uma condenação à morte ou prisão em um campo de trabalho forçado. Também havia chances de uma extradição imediata. Tudo de ruim era possível. De repente, apareceu um senhor de terno azul, o modelo de uniforme dos homens de Mao, e se aproximou. Ele tinha um ar amistoso no rosto e aquilo me confundiu completamente porque eu estava esperando o pior.

Primeiro, o homem me cumprimentou, uma cena que jamais esqueci. Em seguida, ele pediu meus documentos para verificar minha identidade. Enfiei a mão no bolso e peguei meu passaporte e certidão de nascimento de Taiwan e entreguei-os a ele. A expressão facial da autoridade se transformou em uma cara de espanto diante dos meus documentos. Outra vez, o rosto dele mudou de novo, dessa vez sorridente demais. Ele então me pediu para acompanhá-lo até a sala aos fundos. Ele segurava a minha mão de maneira muito carinhosa.

Na China, é normal um homem pegar na mão do outro, mas para mim foi tudo absolutamente esquisito.

Nós entramos em uma sala com sofás confortáveis. Em seguida, vieram servir chá quente. Também chegaram outras pessoas, mais velhas e com aspecto de hierarquia mais alta. Todos os oficiais deram início a um “interrogatório” muito educado e agradável sobre minha vida. Eles perguntaram indiretamente quase tudo; minha infância em Taiwan, por que me tínhamos nos mudado para o Brasil, o que eu fiz de profissão, assuntos pessoais de minha família, e o que fui fazer no Canadá, detalhe por detalhe até o último dia em Vancouver. Chamou a minha atenção o interesse do homem mais velho sobre minha permanência no Canadá. Contei sobre a estadia na casa da minha tia e de que se tratava de gente muito bem de vida. O curioso foi perceber os oficiais enfatizando as boas relações entre Taiwan e China. Eu havia contado que meu pai era chinês e minha mãe de Taiwan e depois disso, o tom da situação mudou completamente. Achei tudo muito suspeito.

A carta documento

Durante o café, um dos oficiais me explicou que entrou em contato com o Senhor Ministro Luo Tié, seu chefe maior em Beijing, na noite anterior, explicando o que ocorrera comigo, e recebeu a orientação de que eu recebesse toda a atenção e ajuda necessária do Ministério da Saúde e do Jiao Ban Nacional.

Informou-me também que eles estavam pesquisando o melhor hospital para eu estagiar e me pediu paciência, em três dias teriam alguma resposta.

Em seguida, disse-me que o governo central estava fazendo uma campanha em nível nacional, dando ênfase para receber bem os compatriotas de Taiwan e ele esperava que meus parentes do Canadá fossem bem informados sobre a boa intenção do governo de então. Era muito importante frisar para as minhas primas a hospitalidade chinesa. Minha identidade taiwanesa e a parente rica em Vancouver salvaram o meu coro, isso ficou óbvio.

Perguntei sobre quando começou a campanha de boa vizinhança entre China e Taiwan e ele me respondeu que tinha sido na semana anterior. Que sorte a minha! Por isso fui bem tratado.

O escritório oficial de estrangeiros, o Jiao Ban Nacional de Beijing , entrou em contato com o 2° Hospital Estadual de Medicina Chinesa de Cantão, na cidade de Guangzhou, capital..

O primeiro dia de hospital 

Antes de iniciar o meu estágio,ainda tinha certo grau de insegurança sobre a acupuntura, fui pesquisar sobre o hospital. Eu coloquei meus trajes de cidadão chinês comum e saí rumo ao hospital: sapatos de pano, camiseta e calça de algodão do estilo operário.  Chegando lá, permaneci entre os pacientes por um bom tempo, observando-os, havia muita gente, quase duzentas pessoas no ambulatório e os consultórios de acupuntura ficavam em volta daquela multidão.

Em cada sala dispunham quatro a seis médicos e de lá, os clínicos gerais distribuem os pacientes para salas maiores onde eram quando necessário submetidos à acupuntura. Passei o dia entre os enfermos, pesquisando o que tinham e como se sentiam depois do tratamento; naquela altura, eu ainda era muito receoso sobre a eficácia desse tipo de terapia.

Depois de uma semana de espionagem , resolvi fazer o curso.

Fizemos uma reunião com o diretor e dois amigos indicados pelo ministro sr. Luo Tié

Logo no primeiro mês de curso, presenciei um caso clínico que fez as minhas teimosias irem por terra. Lembro-me nitidamente do caso dessa paciente. Era uma moça jovem com fisionomia de mestiça, mas nativa, que enfrentava dificuldades para a ingestão de qualquer alimento havia algum tempo.

A moça sofria de algum tipo de estenose de esôfago. Ela era muito magra e se sentia muito fraca, mal conseguia permanecer em pé. O diretor do departamento cuidava pessoalmente dessa paciente com as técnicas de acupuntura e moxabustão com a erva artemísia vulgaris nas regiões do peito e da boca do estômago. Sinceramente, àquela altura, eu não acreditava que a medicina tradicional chinesa pudesse dar certo, e aquele caso era gravíssimo.

Na USP, em meu estágio no grupo de esôfago, a estenose era tratada com dilatação progressiva usando instrumentos específicos. Quando me contaram que essa moça iria visitar uns parentes nos Estados Unidos, eu disse a ela para procurar um centro hospitalar norte-americano para ser melhor assistida. Porém, enquanto a viajem não acontecia, o diretor cuidava da moça todos os dias com uma paciência e dedicação exemplar e, transcorrido quatro semanas de tratamento, a paciente começou a responder positivamente.

Primeiro a moça começou a ingerir líquidos, depois alimentos mais leves e, finalmente, começou a comer de tudo um pouco. Fiquei com o moral lá embaixo.

Lá havia um andar inteiro do hospital voltado para a especialidade dividido em neurologia, ortopedia, cardiologia, ginecologia ,pneumologia.

Eu iniciei meu atendimento no setor de neurologia naquele hospital e lá comecei a entrar em contato com o hábito dos pacientes locais. Uma excelente maneira de conhecer um povo é observar como eles se automedicam. E em uma cultura de quase cinco mil anos, haja história.

No ambulatório da clínica de acupuntura

A maioria dos casos no hospital era de pacientes com muita dor. Também recebiam casos de Parkinson, alterações neurológicas por lesão e também sequelas de AVC. Essa clínica onde eu estagiei a princípio era dirigida por dois neurologistas, uma mulher e um homem. Lembro-me muito bem desses médicos. A mulher era e me deu boas aulas práticas sobre acupuntura. Foi ela a responsável por me ensinar a tirar o diagnóstico dos meus pacientes como um neurologista. O outro médico era muito sábio. Ele tinha uma visão ampliada de como funciona a medicina e de que forma ela ajuda as pessoas. Afirmou para mim, e eu nunca me esqueci das suas palavras, que a medicina ainda tinha muitos mistérios pela frente e a acupuntura era um deles. Esse homem me encorajou a estudar a fundo o tema e me indicou os livros antigos de acupuntura tradicional, porque de acordo com ele, nos livros antigos estavam as respostas da ciência moderna.  As publicações indicadas foram: Neijing, o livro da medicina interna do século V A.C., e O grande sucesso da acupuntura do século XV. Ele me disse:

_Leia os livros sem descartar os conhecimentos médicos da atualidade. Assim você será um excelente acupunturista.  E me orientou como selecionava os capítulos de interesse  de Neijing, porque 70% desse livro não tinha a utilidade..

A importância de integração das duas medicinas.

Estagiei por três meses com aquele casal de médicos e aprendi muito. Nossa relação era cordial, porém sem intimidades, dentro do hospital, ainda imperava as frias maneiras da Revolução Cultural

Os livros de edição interna

Os livros antigos e os ensinamentos da cultura nem sempre eram fáceis de serem encontrados.. Havia os livros de edição interna.

Livro de Edição Interna são livros de interesse nacional. Em geral, esse tipo de livro possui conhecimento mais técnico, militar ou de assunto político sensível. Normalmente, tinham um impresso na capa demonstrando que eram especiais e eram colocados em prateleira especificas com acesso limitado. Esses exemplares eram editados especificamente para os chineses locais.

Não é permitido seu acesso a estrangeiros e naturalmente, eu também não podia comprar nenhum deles.

Faziam isso porque havia uma preocupação em manter uma parcela do conhecimento científico e cultural apenas nas mãos dos chineses nativos, uma forma de instruí-los melhor comparados aos estudantes de fora.

Havia momentos em que éramos convidados a deixar a sala de aula e apenas os alunos chineses ficavam no recinto. Para a política do estágio no hospital, era certo instruir melhor seus compatriotas do que os estrangeiros, apesar de nós pagarmos para estar ali.

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Nesse hospital, antes da minha chegada, houve dois alunos japoneses nesse estágio, e os dois não aguentaram nem um mês de curso, tamanha era a segregação dentro do hospital. Depois de algum tempo, eu comecei a reparar que, quando o diretor político do hospital não estava por perto, os colegas e professores se aproximavam de mim.

Tinha uma moça de educaçãoo física, era a sobrinha do governador e queria ser uma médica de acupuntura, então ela ficava no ambulatório, mas simplesmente foi boicotada pelos médicos.

Ainda tinha uns médicos de descalços, que foram os jovens treinados, a maioria só tinha nível colegial,  pra atuar no campo rural que prestavam alguns cuidados  básicos na área de saúde.

Apesar da campanha do diretor político de tentar me isolar, acabei fazendo bons amigos no hospital. Fiz amizade com um casal de médicos chineses que não falavam o cantonês e estavam um pouco isolados do resto do pessoal também, o marido tinha ótimas tradições familiares  de acupuntura de várias gerações e ele foi o meu professor mais particular.

Na China não existe o costume de pedir cartas de recomendação para um professor para ser aceito em outra instituição de ensino, pelo contrário, se um professor toma conhecimento de que o aluno quer cursar a mesma especialidade em outro lugar, ele pensa que o aluno considera seus ensinamentos ruins e insuficientes. Portanto, quando o boato de que eu gostaria de estudar em Pequim vazou em Guangzhou, alguns mestres ficaram magoados comigo.

Eu disse que tinha apenas dois anos de visto e que meu tempo na China precisava ser aproveitado ao máximo no aprimoramento dos meus estudos. Um dos homens de Luo Tiee considerou os meus argumentos, apesar de não concordar completamente comigo, e disse que faria o que estivesse ao seu alcance.

Eu estava muito satisfeito e grato pelos ensinamentos recebidos, porém quanto mais lugares eu estudasse, melhor seriam minhas qualificações. Pequim é mais famosa que Guangzhou e mais interessante para o meu currículo.

A chegada em Pequim

Era uma típica manhã de dezembro no ano de 1983.

Do lado de fora da estação, estavam o senhor Ministro Luo Tie responsável pelo Jiao Ban de Pequim. Ele me garantiu que seu assessor pessoal conseguiria algum hospital para eu estagiar na cidade.

As cidades grandes na China oferecem mais oportunidades e cursos melhores, assim como ocorre no Brasil, e os melhores especialistas em acupuntura estavam em Pequim. Muitos deles eram os discípulos dos médicos das famílias reais da última dinastia..

Conforme as orientações do Ministério de Saúde Chinês, não era permitido ensinar a acupuntura em nível avançado para sujeitos que não tinham o interesse de permanecer na China. Havia a preocupação de preservar os milagres do tratamento chinês entre os chineses. Na verdade, essa postura é também comum no Ocidente e no Brasil. Essa orientação foi enfatizada em vários simpósios nos quais eu participei e pude constatar inclusive dentro do ambiente hospitalar.

Como o exemplo atual: o governo americano boicota as informações tecnológicas contra  a China.

Era gostoso ouvir um pouco de português e estar perto de gente próxima. Depois de tantos meses sozinho, encontrar alguém do Brasil, mesmo pessoas estranhas, trazia um sentimento de acolhimento muito bem-vindo. Daí, num belo dia, o casal me avisou que ia passar um período de 6 meses no Brasil e disse que eu poderia ficar como hospede em sua casa até o regresso. Ou seja, de repente eu havia conseguido um lugar quatro vezes melhor do que onde eu estava; três quartos, cozinha, banheiro, tudo de graça!

Teve uma época, fiquei sem dinheiro, comia ate’ a comida da rua oferecida aos trabalhadores de construção.

Nesse bairro residencial, havia guardas de segurança na entrada do condomínio. Todas as vezes que eu voltava, eu precisava apresentar o passaporte.

Novos amigos

Um dia fui tomar sorvete com os amigos da embaixada brasileira e fui apresentado para dois rapazes, um norte-americano e outro japonês. Os dois estavam na China pelos mesmos motivos que eu, vieram para estudar acupuntura. Eles formavam um par divertido. Falavam um pouco de chinês, mas não o suficiente para se comunicarem bem.

O japonês tinha amigos interessantes junto com as autoridades chinesas, e o americano parecia também ter algum contato, mas ele nunca me contou quem era.

Eu percebi pela conversa que ambos eram bem relacionados e arrumavam estágio fácil na cidade. Se de um lado eles tinham as graças das autoridades, de outro, eu conseguia me comunicar melhor em chinês. Era uma amizade muito bem-vinda para a ocasião.

Porém, depois de algumas semanas, percebi que os hospitais aceitavam o japonês e o americano de maneira muito fácil e eu sempre era educadamente aceito mais tarde.

 

Os casos crônicos em Pequim

Em Pequim, principalmente no inverno, casos de rinite , bronquintes são muito severos e comuns. O vento traz as areias do deserto de Gobi, que se juntam com a poluição das usinas de carvão, causando moléstias respiratórias gravíssimas. Na cidade existe uma procura muito grande por médicos acupunturista que cuidam desse tipo de enfermidade. A acupuntura é muito indicada para doenças respiratórias. O método ajuda a reduzir os sintomas de alergia e inflamação e aumenta a imunidade do paciente.

Porém, ao contrário dos hospitais de Guangzhou, em Pequim, os complexos gigantescos não seguiam uma divisão por especialidade, os pacientes eram triados à medida em que chegavam e depois dirigiam-se até a ala de acupuntura.

Eu me lembro de um paciente com asma que foi tratado com cortisona e não apresentou melhora e por isso recorria à acupuntura. Nosso professor do hospital decidiu tratá-lo com o uso de moxas em cima dos pontos de acupuntura. O tratamento dele também não surtiu efeito. Foi daí então que ele propôs queimar os pontos do corpo com moxa em brasa onde se aplica a agulha. Naturalmente aplicavam um pouco de analgésico. De qualquer maneira, sentir cheiro de churrasquinho em um humano era algo inimaginável para mim. A terapia consistiu em uma sessão por três semanas seguidas. E o resultado? O homem na segunda semana apresentou boa  melhora.

Além do tamanho da unidade e diversidade dos casos, outra grande diferença entre Pequim e Guangzhou era a flexibilidade de pensamento. Em Guangzhou, o sistema político era muito mais liberal por causa da proximidade com o exterior  e com Hong Kong. Já em Pequim, ainda havia muita desconfiança e rejeição ao que era novo e vindo do estrangeiro, fosse pessoa ou conhecimento, o que não era tradicional acabada enfrentando dificuldades para se adaptar àquele corpo de profissionais.

O corpo médico de Pequim era formado por muitos médicos de renome da época e que por serem famosos dentro das suas especialidades, acabavam se fechando para as novas informações científicas que auxiliavam e expandiam os limites de atuação das terapias orientais de tratamento.

De qualquer forma, tive uma oportunidade raríssima na cidade.

Meus professores foram transferidos  do hospital para participarem do Segundo Curso Avançado de Aperfeiçoamento em Acupuntura, um aprimoramento destinado apenas aos profissionais de elite da China. Apenas dois especialistas de cada estado (província) eram selecionados. Dei muita sorte nessa ocasião, porque um  aluno chinês enviado pela Universidade do hospital o qual eu estagiava, ele ficou doente no segundo mês das aulas e então, meu professor propôs a mim se eu não gostaria de participar no lugar dele como aluno. Essa especialização não era permitida para estrangeiros e eu não receberia o diploma, porém eu conseguiria uma carta dos mestres comprovando minha participação.

A oferta permitia uma mobilidade muito maior entre os hospitais da cidade. E cada complexo hospitalar tinha a sua especialidade. O curso trouxe técnicas específicas de cada professor aprendidas dentro da tradição familiar. Eram profissionais netos e bisnetos de outros acupunturistas exibindo seus conhecimentos milenares ao corpo médico de Pequim.

As aulas teóricas aconteciam no Hospital Municipal de Medicina Chinesa de Pequim e de lá partíamos para as unidades hospitalares para atender aos pacientes. Entre umas 10  unidades, estava o Hospital Pediátrico de Pequim, a maior casa de saúde especialista em crianças com síndrome de Down e sequelas cerebrais do mundo na época. Também assistimos a casos recorrentes de angina no Hospital do Coração de Pequim, além de outras doenças cardíacas. Eu fiz esse estágio no ano de 1983 e vi, quase dez anos depois, a quantidade de pessoas que eram tratadas por causa do Terremoto de Tangshan, no dia 28 de julho de 1976.

 

Os estudantes da OMS

Antes do Segundo Curso Avançado de Aperfeiçoamento em Acupuntura. fiz um curso numa turma da OMS,  contávamos com cerca de 30 alunos selecionados pela OMS (Organização Mundial de Saúde). A grande maioria de língua latina. Em algumas ocasiões, nós assistimos aulas com eles. O curioso é que apesar de mal falarem a língua chinesa, eles reservavam uma postura de superioridade sobre nós. Eu tinha pena. Mal sabiam a língua chinesa e imaginavam saberem mais que os estudantes daquele país. Inclusive não cumprimentavam ninguém e andavam apenas entre eles.

Um dia eu vi um estudante da OMS mexicano lendo um exemplar de O Livro do Imperador Amarelo de cabeça para baixo. Imagino que ele não entendeu muita coisa. Esse livro era tão difícil que mesmo falantes da língua chinesa precisavam de traduções de chinês arcaico para compreender o que estava escrito.

 

Uma lição de disciplina

Houve uma situação onde eu fiquei encarregado de administrar um setor de tratamento de acupuntura porque meu professor responsável foi convocado para dar um curso em Moscou pelo período de dois mêses. Esse médico era muito famoso e usava uma técnica conhecida pelos cinco pontos Shu. Trata-se de uma acupuntura feita nos quadro membros.

Aquele tratamento era ultrapassado, mas o professor insistia em fazer daquele jeito.  Mesmo não conseguindo obter bons resultados  para boa parte dos seus pacientes, aparecia muita gente no seu consultório porque ele era famoso. Aí então, na sua ausência, usei os conhecimentos que eu aprendi em Guangzhou.

Minha metodologia não se restringe aos pontos da mão e do antebraço, principalmente os da técnica de Guangzhou, funcionam muito melhor do que o tratamento baseado nos conceitos de 5 Shu antigos.

Naquela época, fui de acordo com o que eu achava melhor para o paciente e não me arrependo disso. Porém a cultura ocidental é muito diferente da oriental e me faltou maturidade e delicadeza para lidar com a questão. Daquele mal-estar em diante, ele não quis mais falar comigo, apesar de eu saber por outras pessoas que até hoje ele fala muito bem de mim.

 

Os limites da vida particular

O clima entre eu e as autoridades do hospital azedou de vez quando eu conheci uma jovem chinesa estudante de medicina. Nós éramos de turmas diferentes, mas nos víamos pelo corredor e começamos aquela trocada de olhares. Com o tempo fomos criando liberdades até que eu convidei ela para um passeio e, depois de alguns meses, atamos compromisso.

Os universitários eram  proibidos de namorar, para o governo chinês, o estudante exemplar não pode se casar até finalizar os estudos, porque o país vê os jovens como investimento intelectual do Estado.

Mais tarde, resolvemos nos casar, quase ninguém na Universidade sabia dos nossos encontros. Também contamos para todos, inclusive os professores e diretores do hospital porque ela, por ainda não ter se formado, ela precisaria de uma autorização da escola para poder se casar. Mas a escola se recusou a fornecer.

Foi quando tive a ideia de fazer um apelo ao próprio presidente da China o senhor Deng Xiaoping relatando as minhas dificuldades em me casar com minha noiva, e eu tinha um curto prazo por causa do visto. E por incrível que pareça, meu pedido de ajuda foi ouvido. A Universidade recebeu uma carta do próprio presidente com as seguintes palavras: o doutor Hong Jin Pai é do interesse do país e qualquer atitude contra o interesse do país será vista como uma postura

De volta ao Brasil

Aterrissei no Brasil em abril de 1984. Somente dois meses depois, o navio aportou em solo brasileiro com minhas coisas. Os policiais do porto confundiram a Artemísia que eu trouxe em grandes quantidades com maconha, e por isso,  minhas coisas ficaram presas por um bom tempo com as autoridades. Ao que parece, até enviaram uma amostra da erva.



 

A força dos colegas

Gradualmente também fui retomando contato com meus amigos e colegas de profissão. Um deles foi o doutor Benjamim Wolf Handfas, neurologista do hospital Albert Einstein. Ele me perguntou se eu tinha interesse em tratar pacientes no pós-operatório de neurocirurgia porque alguns pacientes não podiam tomar medicação analgésica devido a alergias com analgésicos ou pelo efeito colateral de alguns medicamentos. E eu então topei o convite.

Com toda a certeza, eu era o primeiro acupunturista cuidando de pacientes no pós-operatório no Hospital Albert Einstein e arrisco dizer no Brasil. Os funcionários me olhavam com estranheza e era até engraçado. Eu pedia para esterilizar o material ou produto antisséptico no posto de enfermagem, e as enfermeiras não compreendiam o que eu faria com aquelas agulhas.

Mais tarde, o próprio presidente do Hospital Albert Einstein me chamou para tratar seus pacientes no hospital. E em pouco tempo minha clientela na comunidade judaica aumentou muito.

 

Em 1989, eu e colegas fundamos o CEIMEC (Centro de estudos Integrados de Medicina Chinesa). Somos eu e os médicos: Ling Tung Yang, Lin Chen Hau, Wu Tu Hsing e Peng Ming Huang. Nossa equipe agrupa a medicina ocidental com as técnicas orientais de terapia. Hoje, somos considerados uma referência nacional para estudantes e pacientes.

Teve uma sexta-feira em que a minha clínica  não estava funcionando, fui ver uma palestra no centro de dor ministrada pelo próprio professor Manoel. Uma aluna que tivemos nesse curso do CEIMEC já havia comentado de mim para o professor Manoel Jacobsen Teixeira, ele era coordenador do Centro de Dor do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. O professor palestrava e avistou-me na plateia. Naquele instante, ele me convidou para fazer parte de sua equipe. Eu estava diante de mais de cinquenta médicos. Fiquei muito emocionado e aceitei o convite de honra.  Daquele dia em diante, tive a honra de trabalhar no HC-FMUSP, o hospital mais importante da América Latina.

No comço fiquei na líga de Cefaléia do Grupo de Dor, a minha função era atender a pacientes encaminhados pelos colegas e dar uma demonstração da técnica para alunos de medicina, alguns tinha curiosidade em aprender acupuntura como eu quando jovem. Naquela época, ainda havia poucas pesquisas que esclareciam cientificamente como as agulhas agem no organismo, então os alunos me lembravam eu no início, duvidando de tudo. Naturalmente, alguns tinham ressalvas com a eficácia do tratamento.

O pessoal das cirurgias dentárias também se interessou pelo mecanismo de alívio de dor da articulação temporomandibular. A acupuntura tem bom efeitos de alívio nesta região do corpo. Inclusive, nós montamos um curso de acupuntura voltado para analgesia de dor orofacial/cefaleia para dentistas e alunos de medicina.



 

A escolha de um caminho

Já me chamaram charlatão na reunião de formandos da faculdade de medicina. Fazia cinco anos que eu havia me formado e um amigo me perguntou:

Hong, você ainda estuda aquela tapeação?

Esse tipo de situação acontece porque estamos em um país muito pouco conectado com o mundo, onde ainda existem pessoas aplicando acupuntura sem material esterilizado, porque acreditam assim desempenhar melhor o método dito tradicional. Eu não dei ouvidos àquela provocação e fiz bem. Muitos anos mais tarde, aquele mesmo colega me elogiou pela prática e disse-me que eu era um homem de visão. Muita coisa mudou de lá para cá.

Quando voltei da minha primeira viagem à China, a acupuntura não era respeitada no corpo médico.  enquanto, hoje, tem-se inclusive acupunturistas em várias áreas do Hospital das Clínicas: Neurologia, Instituto de Ortopedia e Traumatologia, Instituto de Criança, ginecologia, geriatria, clínica médica, Psiquiatria, e  ICESP,  um hospital referência para o Brasil inteiro e América Latina.



 

Participação na SMBA.

No início da minha participação, tive certa dificuldade em integração com os colegas, porque naquela época, alguns colegas  ainda acreditavam que a medicina chinesa era  independente, até os conceitos de neurofisiologia sobre a acupuntura e da dor foram aceitos gradualmente graças pelo apoio do Prof. Dr. Luiz  Biella de Souza Valle, outro exemplo de desafio numa das aulas de mecanismo de ações de dor dada pelo prof. Manoel J. Teixeira só tinha uma pessoa.

Em eventos científicos, sugeri que deveria ter a integração de acupuntura com a medicina ocidental. Começando pelos eventos estaduais:

O apoio do prof. Manoel J. Teixeira  foi fundamental no nosso processo de reconhecimento de acupuntura, que falava sempre  o mecanismo de dor e da acupuntura no início dos congressos. Sem dúvidas. Os colegas da diretoria da SMBA também trabalhavam muito.

Com o apoio de todos, passo a passo, fizemos uma grande Sociedade  Médica de Acupuntura ao nível nacional.

Para divulgar a integração, sempre inserimos colegas renomados na mesma área, exemplo: o espaço da área de ortopedia, já’ convidamos os professores  titulares  da ortopedia, fisiatria, geriatria e reumato, além dos palestrantes de acupuntura.

Aos poucos foi  aceita  a integração da  medicina chinesa /acupuntura com a medicina ocidental.

No período  da SMBA, fizemos as revistas de acupuntura e boletins de acupuntura com a tradução dos artigos publicados nas revistas de acupuntura da China

Convidamos os professores de MTC/acupuntura da China e de Taiwan nos nossos congressos.

Estimulamos a participação de colegas nos eventos de outras sociedades,

Defendemos a importância dos médicos na área de atuação,

Fazemos os cursos de especialização para os médicos,

Ou seja, aumentando os números de médicos e melhora de sua qualidade profissional vai ocupar mais espaços de acupuntura em todas as áreas, que inibiriam  o crescimento dos não-médicos.

No complexo do hospital das clínicas da Faculdade de Medicina da USP, em 1995, foi  fundado o Centro  de Acupuntura no IOT-Instituto de Ortopedia e Traumatologia pelo Prof. Dr. Wu Tu Hsing com alguns colaboradores. 

Mais tarde começou o curso de MTC/acupuntura para os médicos interessados.  Enquanto, hoje, tem-se inclusive acupunturistas em várias áreas do Hospital das Clínicas: Neurologia, Instituto de Ortopedia e Traumatologia, Instituto de Criança, ginecologia, geriatria, clínica médica, Psiquiatria, e  ICESP,  um hospital referência para o Brasil inteiro e América Latina.

A equipe do CEIMEC fez a tradução de livros de acupuntura e da MTC em português.

A-Tratado contemporâneo de Acupuntura e moxabustão

  • Fundamentos da Medicina Tradicional Chinesa
  • Diagnóstico e Tratamentos

B- Pontos e Meridianos

C-Métodos de Acupuntura e Manipulação

E participação de outros livros

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